09/02/2011

Perfídia

Todo dia, ao acordar, ele atualizava a conta mentalmente: 15 anos, 3 meses e 9 dias. Parecia um condenado a contabilizar os dias de uma pena, mas era apenas o tempo decorrido desde que ela – a primeira namorada – tinha ido embora. “Era apenas” é o modo de dizer, pois o cara tinha sofrido feito um animal antes de a contagem atingir 3 anos completos. Depois do terceiro aniversário a dor se transformou em outras coisas: saudade, afeto, imagens que passavam pela cabeça como brisa a refrescar a memória e a enxugar o suor que ameaçava correr pela cara. Dor mesmo não sentiu mais, porém a conta diária virou mais um vício a se juntar à cerveja e ao cigarro.

Todo dia, ao acordar, ele atualizava a conta mentalmente: 15 anos, 7 meses e 25 dias. E só depois de feita a conta é que saía da cama para cuidar da vida. Tomar banho, tomar café, tomar o ônibus, tomar juízo e tomar rumo profissional eis que seu diploma de Administrador estava muito mal administrado. “Administrador formado aceitar ser caixa de banco? Não foi pra isso que eu te paguei estudo caro!” – ralhava a mãe sem que ele prestasse muita atenção. “Ano que vem faço concurso pra minha área e aí passo a ganhar melhor e a trabalhar na minha formação!”. A tese de defesa era um mero discurso pronto, porque o concurso era ideia remota. Mas servia para aquietar a mãe.

Todo dia, ele atualizava a conta mentalmente: 16 anos, 2 meses e 14 dias. Nunca mais tinha visto a primeira namorada. Nunca mais tinha visto cara a cara, pois mantinha um perfil falso no Orkut para visitar as fotos dela. A guria nunca tinha sido um primor de inteligência. Talvez por isso as fotos fossem acessíveis a quem por lá passasse, ela não impusera aos álbuns nenhuma restrição. Devia continuar sendo a mesma avoada, devia ser isso. Mas continuava bonita, apesar do tempo e da gravidez dos gêmeos. Ah, ela continuava linda, apesar dos quilos a mais. Em verdade, nunca foi magra. Ah, aquele corpo: potranca! Os longos cabelos que ele fazia de rédeas, os tapas de mão aberta nas ancas e os gritinhos e pedidos dela “Bate mais! Me bate?”. Mulher é bicho do demônio.

Todo dia, ao acordar, ele atualizava a conta mentalmente: 16 anos, 6 meses e 11 dias. Foi justamente quando a contagem chegou nessa marca que ele acabou a reencontrando, acidentalmente como sói acontecer a todos os reencontros. Uma tarde qualquer de um dia comum. Num supermercado. No corredor dos biscoitos. Ele tinha ido lá para comprar bolacha maisena já que a mãe reclamava de uma suposta úlcera. “Bolacha maisena e leite e amanhã já estou melhor!”. Se a mãe falara era ordem. Bolacha maisena e leite, compra rápida, coisa de 5 minutos e então estaria de volta à rua porque fazer mercado era algo que lhe enchia o saco desde criança. E apressado entrou no corredor de biscoitos e deu de cara com ela. Com ela e com os gêmeos.

Faltou pouco pro cara botar o coração pela boca. Ela quis ensaiar um olhar de desprezo. As faces ameaçavam explodir. O sangue fervia nas veias. Os gêmeos disputavam um pacote de rosquinhas como se fosse um cabo de guerra. Os dois cara a cara depois de 16 anos, 6 meses e 11 dias. Ela falou primeiro até porque ele não conseguiria “Você?” – e dizendo isso ela conseguiu não dizer nada, mas ele respondeu, sem nada acrescentar “Eu!”. Depois ela, surpresa, disse “Você! Você!” e ele, entre emocionado e sem jeito, replicou “Pois é, eu mesmo!”. Ela desviou o olhar para os gêmeos e advertiu “Parem com isso ou boto os dois de castigo quando chegarem em casa!”. Depois se voltou a ele e perguntou “Faz quanto tempo que a gente não se vê?”.

A resposta veio imediata à cabeça do cara “16 anos, 6 meses e 11 dias!”, mas se ele falasse isso o que ela poderia pensar? O cara é um tarado, um obsessivo, um solitário, um paranoico, psicopata, fracassado, um bobalhão! Ele desconversou - fazendo gênero - riu e respondeu “Quanto tempo a gente não se vê? Sei lá, faz algum tempo. Tempo é coisa que passa rápido, como árvores em sentido contrário nas margens das estradas quando a gente viaja. Eu viajei tantos caminhos, não sei te falar do tempo, sei te falar da estrada! Corri muita estrada desde que a gente se viu pela última vez. Sou um homem do mundo, meu bem maior é a liberdade. De todas as mulheres que eu tive, a que me seduziu mesmo foi a liberdade!” – e disse isso como se tivesse incorporado James Dean.

E devolveu a ela a pergunta “Faz quanto tempo que a gente não se vê?”. A resposta dela veio imediata “16 anos, 6 meses e 11 dias!”. Ele debochou - fazendo gênero - e observou “Vocês mulheres são umas românticas! Aonde já se viu se prender tanto a um namorozinho como aquele nosso? A gente tinha o quê? 16, 17 anos? E você lembra exatamente o tempo decorrido do nosso último encontro até hoje?” – e completou em tom de brincadeira “Olha, sei não, mas isso é coisa de gente obsessiva hein? Não vá falar isso perto do seu marido que é capaz de ele pedir o divórcio...”. Ela riu, ele riu, despediram-se. Ele ainda se dirigiu a ela “Se liberte dessa loucura de contar o tempo. O passado é a pior das prisões...” - e disse isso como se tivesse incorporado James Dean.

Na manhã seguinte ao reencontro, ainda não eram 5 horas, ele atualizou a conta: 1 dia desde o último encontro com ela. Parecia um condenado contabilizando a pena, mas havia nele alívio. “Ela também contou cada dia, em todos esses anos, em que estivemos separados. Se isso não é amor é o quê? Ela sentiu a minha falta como eu senti a falta dela”. Teve um instante em que chegou a ter pena do marido “Burro! Corno!”. Depois da conta habitual e de toda sorte de ilações, saiu da cama para cuidar da vida e não cabia em si de tanto orgulho. Pelo caminho - ao lembrar-se da resposta dela (“A resposta dela veio imediata: 16 anos, 6 meses e 11 dias!”) – repetia, de si para si: “Isso é amor. É amor! Coitado do marido dela: Mulher é bicho do demônio!”. E ria.

Na manhã seguinte ao reencontro, ela abriu a gaveta do criado-mudo, de lá tirou uma caderneta, um lápis, ligou o abajur e escreveu “16 anos, 6 meses e 12 dias!”. O marido, bêbado de sono, censurou “Ah, vai me dizer que você está atualizando – às 5h30 da manhã – a data da nossa primeira transa? A data que eu roubei você das mãos daquele teu namoradinho esquelético, asmático e aparvalhado? Ah, tenha dó né? Me deixa dormir. Isso é quase obsessão...”. E ela, guardando os apontamentos na gaveta do criado-mudo, respondeu com a boca colada ao ouvido dele “Isso é amor. É amor!”.

Mulher é bicho do demônio!