25/08/2010

A vida é assim!(Será?)

“A vida é assim!” – é o que sempre me diz seu Valdir, 73 anos de idade, viúvo, pai de quatro filhos, avô de sete netos e duas vezes bisavô. Família grande, e seu Valdir vive só, num lar para idosos, no Tarumã, em Curitiba. Vive só, ou, por outra, convive com idosos que tiveram a mesma sorte que a sua; ou, por outra, o mesmo destino.
A um canto do quarto, seu Valdir ocupa uma cama. Noutro canto, ocupa um pequeno armário e dentro dele guarda poucas roupas – inclusive uma camisa do Atlético, puída -, um rádio com toca-fitas, uma caixa de sapatos com fitas cassete, um álbum de fotografias e mais nada. “A vida é assim!” – justifica-se seu Valdir, de olhos baixos e num fio de voz, enquanto organiza suas poucas roupas, sua caixa de fitas e suas lembranças, diante dos olhos de visitantes bissextos.
Um lar para idosos, na verdade, não é um lar, mas, sim, a fragmentação de muitos lares. Todo mundo sabe disso: os idosos que estão lá sabem, seus filhos e netos sabem, a sociedade sabe. O abandono dos idosos é desses temas insolúveis e que implicam em múltiplas responsabilidades, por isso o pacto cínico, covarde e conivente do silêncio coletivo e da indiferença difusa.
Ao abandono dos idosos se somam outros abandonos. O das crianças nos orfanatos brasileiros (no Brasil, adotam-se – preferencialmente – bonecas: meninas de cabelos loiros e olhos claros, não se adotam crianças). O das meninas que vendem o corpo nas ruas para comprar crack. O dos meninos que, se não forem salvos pela bola ou pelo pandeiro, acabam aliciados pelo crime organizado para traficar, matar e depois cumprir sua inevitável sentença de morte. “A vida é assim!” – é o que sempre me diz seu Valdir.
Aí quando a consciência pesa demais, a sociedade civil organizada faz lá o seu Criança Esperança, leva seus alunos a visitas nos Asilos (em datas como a Páscoa) e acredita ter purgado sua culpa, resgatado sua dívida quando, na verdade, não fez mais do que a mínima obrigação. Solidariedade via mídias de massa é solidariedade ou é marketing pessoal/institucional? Serve para diminuir as marcas deixadas pela vida naqueles que sofrem ou se presta a fortalecer as Marcas no mercado de consumo? Diante de tantas perguntas, a permanente resposta: “A vida é assim!” – é o que sempre me diz seu Valdir.
A um canto do quarto, seu Valdir ocupa uma cama. Noutro canto, ocupa um pequeno armário e dentro dele guarda poucas roupas – inclusive uma camisa do Atlético, puída -, um rádio com toca-fitas, uma caixa de sapatos com fitas cassete, um álbum de fotografias e mais nada. Em dia de jogo do Atlético, seu Valdir veste a Camisa e liga o rádio. Sente falta das narrações do Lombardi Júnior. Reclama: “Esses caras não sabem narrar futebol. Tem mais piada do que jogo e vivem perseguindo o Atlético!”.
O velho rádio sobre a mesa, a cadeira desconfortável e o volume que oscila conforme o andamento da partida. A mão trêmula no comando dos botões. Atlético no ataque e o som que vai se elevando a ponto de ecoar pelo quarto e chegar aos corredores. Gol do Atlético é assinalado no volume máximo; gol adversário é a senha para desligar o aparelho por pelo menos três minutos.
Depois da pausa, a mecânica se reinicia. Volume oscilando, coração batendo forte, reclamações: “Mas até dentro de casa? O juiz nos rouba até dentro de casa? Mas esse treinador não vai fazer nada? Só bola parada? Mas não tem uma jogada ensaiada esse time?”.
O velho rádio e toca-fitas. O Atlético em campo. Quando há derrota, a mão trêmula nos botões muda a função do aparelho e o rádio dá lugar ao toca-fitas. Quando há derrota, seu Valdir, imensamente triste, põe pra tocar: “Velho, meu querido velho/Agora caminha lento/Como perdoando o vento/Eu sou teu sangue meu velho/Teu silêncio e teu tempo…” – e depois chora baixinho, enxugando os olhos com a Camisa do Atlético. Perguntado da tristeza, seu Valdir responde “A vida é assim!” e vai organizar, em silêncio, suas poucas roupas, sua caixa de fitas e suas lembranças.
Quando há vitória, a mão – trêmula também pela emoção – move os botões mudando a função do aparelho e o rádio dá lugar ao toca-fitas. Quando há vitória, seu Valdir, imensamente feliz, põe pra tocar: “Covarde sei que me podem chamar/Porque não calo no peito essa dor/Atire a primeira pedra, ai, ai, ai/Aquele que não sofreu por amor” e depois vai organizar, cantarolando, suas poucas roupas, sua caixa de fitas e suas lembranças.
Quando há vitória do Atlético, seu Valdir aponta os retratos, no álbum de fotografias, e as personagens vão ganhando nomes: “Este aqui sou eu, no tempo em que usava bigode! Leonor, minha senhora, que saudades! Minhas crianças: Maria Amélia, a Rita, Ricardo e o caçula, Alberto. A casa ficava na Água Verde, hoje não tem mais. A pequeninha no colo da Rita é a Isabelzinha, minha primeira netinha, já é mãe! Mãe do João Vítor, um guri que você precisa ver! Forte igual um touro, vai jogar no Atlético um dia, vai me dar muitas alegrias. Semana que vem a Isabelzinha vai trazer o João Vítor, aí você vai ver! Semana que vem”.
No último domingo, contra o Flamengo, foi assim: rádio oscilando de volume por noventa sofridos minutos, coração batendo forte no peito, gol explodindo na potência máxima aos trinta e sete do segundo tempo, mão trêmula nos botões que mudaram a função do aparelho de rádio para toca-fitas e a canção do Roberto Carlos: “Amar pra viver/Ou morrer de amor/Amar pra viver/Ou morrer de amor”. Depois seu Valdir foi organizar, cantarolando, suas poucas roupas, sua caixa de fitas e suas lembranças.
Semana que vem ninguém sabe se o Atlético vai ganhar, se vai perder, se a Isabelzinha vai, enfim, levar o João Vítor para visitar o seu Valdir. A vida são as derrotas, as vitórias, os bons e maus momentos, as lembranças, um álbum de retratos (são só retratos, mas como doem!), algumas canções – alegres ou tristes, não importa -, um punhado de roupas, uma camisa puída (desde que seja do time do coração), as histórias que a gente carrega no peito pra contar, alguns amigos e perguntas sem respostas. No final das contas, “A vida é assim!” – é o que sempre me diz seu Valdir. Será?

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