16/05/2009

Até que a coerência nos separe.

O mundo é feito de dúvidas, eis aqui uma grande certeza. Outra certeza das grandes é que a frase anterior se constitui num paradoxo evidente; evidentemente dos piores.
Mas o que eu quero realmente dizer é que nós sempre nos deparamos com a dúvida e, tudo o que queremos, é um pouco de certezas diante das questões da vida. Pois bem, não é que dia desses me surgiu um amigo atormentado por uma dúvida tão cruel quanto corriqueira.
O caso era o seguinte: ele queria saber se a guria, de quem ele estava gostando, gostaria dele também, ou não. Grande dúvida, sem dúvida! Como o problema me foi submetido resolvi passar logo à solução.
Decidi que o primeiro passo era saber se ela sabia do amor que ele nutria por ela. Parece besteira investigar isso, mas não são raros os casos de amor unilateral. Há quem chame esses casos de amor platônico ou apenas timidez. Eu prefiro chamar de vergonha ou apenas pânico.
Segundo me garantiu o amigo, ela sabia, sim, do amor que ele sentia por ela. Agora, restava saber se o meu amigo, Fernando, realmente amava aquela guria ou se estava só interessado em ter com ela relações impróprias, intenções essas sempre muito próprias desses maus elementos que eu insisto em chamar de amigos.
Então, vejam só: para saber se alguém realmente ama outro alguém eu desenvolvi um método. Esse método consiste em ouvir a conversa do casal e depois analisar, cuidadosamente, essa conversa. Se durante a conversa um falar ao outro uma grande besteira e o outro responder com uma besteira ainda maior será caso de paixão intensa e recíproca.
Eu explico. É que quando alguém está perto da pessoa amada fica muito atrapalhado. Fica prestando atenção na roupa, no perfume, nos olhos, na boca e se esquece de prestar atenção no diálogo. Por isso, acaba falando besteira.
Logo, quando existem duas pessoas submetidas a essa condição especial, o diálogo fica um tanto bestificado, bastante emburrecido e totalmente sem nexo.
Com base nessa técnica, eu montei um esquema com o meu amigo e resolvemos ir ao encontro dela, a amada dele, num barzinho tranqüilo do Centro da cidade, para que eles enfim pudessem conversar e eu pudesse analisar o diálogo dos dois.
Assim eu poderia ouvir a conversa e definir a medida do amor que existia entre eles e, mais do que isso, eu poderia aferir se realmente havia amor entre eles. Finalmente, fomos ao bar.
Chegando lá, mal deu tempo de tomarmos um chopp e ela apareceu. Ela era bonita, muito mais que bonita, era uma boneca e usava na ocasião todos os acessórios da linha da Barbie.
Loira, esguia, equilibrando seu um metro e setenta e cinco centímetros sobre saltos altos, seus cinqüenta e cinco quilos muito bem contidos num vestido preto de generosas fendas e decotes e o preto do vestido contrastando com uma boca carnuda toda pintada de vermelho.
Eu que torço pelo Atlético Paranaense ao ver aquela escultura ostentando as cores do meu time quase me perfilei para cantar o hino do Atlético para ela, mas me contive.
“Que besteira, meu Deus do céu, cantar hino de time de futebol para uma mulher daquela”, foi o que eu pensei enquanto me veio à cabeça outro comentário idiota que eu quase fiz para ela. Eu ia dizer: “Você é a nora que mamãe pediu a Deus”, mas a tempo percebi que era bobagem demais.
Depois de tanta confusão mental, o que me chamou a atenção foi o fato de o meu amigo não parecer tão entusiasmado com a presença dela. Talvez por já conhecê-la, talvez por nervosismo, sei lá, e nem quis mesmo saber o motivo, afinal eu estava ali só para ouvir e analisar a conversa dos dois.
E a conversa, enfim, começou. O meu amigo disse, para quebrar o gelo:
- Vanessa, eu queria te apresentar o meu amigo Rafael.
Mal ele terminou de me apresentar e eu me dirigi, atrapalhado e trêmulo, para a Vanessa:
- O teu nome é Vanessa? Que coincidência, eu sempre quis namorar uma Vanessa! Que coincidência, que coincidência..., Vanessa, Vanessa..., eu repetia num misto de encantamento e de perplexidade.
Vendo o meu comportamento atabalhoado, lembro-me que ela sorriu e disse, docemente:
- Muito prazer, Rafael!
Meu Deus, ela disse aquilo e eu estremeci. Ela me disse, com todas as letras: “Muito prazer” e prazer é palavra erótica e lasciva, ao menos foi isso o que eu pensei enquanto respondia:
- O prazer é todo meu, Vanessa. Mas não é da boca para fora, não. É prazer mesmo, dos grandes e sem qualquer fingimento, pode acreditar. O prazer é todo meu, todo meu!
Nessas alturas o meu amigo Fernando já me olhava meio de lado, como se estivesse me reprovando, como se estivesse incomodado, mas eu nem liguei. E o Fernando impulsionava a conversa:
- Vanessa, o Rafael também se formou em Direito na PUC, só que um ano antes da gente. Não é legal?
Ouvindo isso eu emendei mais uma sandice, eu falei:
- É claro que é legal, né, Fernando? Se foi faculdade de Direito que eu fiz então é legal!
A Vanessa sorriu e foi quando eu me espantei com o tamanho da bobagem que eu havia falado. No entanto, por maior esforço que eu fizesse para dizer coisas inteligentes, não saía nada, era tudo em vão.
E o Fernando lá, falando coisas inteligentes, construindo frases bem elaboradas, discorrendo teses consistentes e exibindo teorias bastante ilustradas. Era um tal de o Fernando falar em Camus, Sócrates, Kant, Marx, Reale, Weber e eu lá, hipnotizado pela beleza da Vanessa e sem conseguir concatenar meus pensamentos.
E o Fernando falava e falava e a Vanessa, embora com um ar desinteressado, ia respondendo ao Fernando no mesmo nível, com toda desenvoltura, com todo o conhecimento e sem qualquer hesitação.
Vendo tudo aquilo eu pude constatar: nenhuma besteira foi trocada entre eles. Definitivamente entre eles não havia amor: assim dizia a minha teoria. A ausência de besteiras no diálogo entre homem e mulher equivaleria à falta de amor, indubitavelmente!
Após duas horas inteiras de Filosofia, Política, Direito e outros assuntos de mesmo desinteresse, a Vanessa se cansou da preleção do Fernando e passou a conversar comigo. Ela me perguntou:
- Rafael, então você gosta de Leis, não é mesmo? Fez até faculdade de Direito!
Pensei comigo: “Que pergunta besta! Se eu escolhi estudar as Leis é porque gosto de Direito, por óbvio”. Respondi, tentando impressioná-la:
- É, eu gosto muito do Direito! É como eu costumo dizer: “Jus est ars boni et aequi”, ou em vernáculo: “O Direito é a arte do justo e do equilibrado”; estava criado mais um comentário inútil.
- Isso que você falou é Direito Romano, não é?
- É, é uma frase em Latim.
- Latim parece língua de cachorro, você não acha?
- Não, Vanessa, eu não acho não. Afinal de contas, cachorro não fala!
- Tá, mas se falasse seria em Latim, não seria? Latido e Latim, o cachorro falaria em Latim!
- É, talvez! Se o cachorro fosse um Pretor Romano...
- Mas e se ele fosse um Pastor Alemão?
- Ah, daí não. Se ele fosse um Pastor Alemão e ainda por cima fosse Jurista ele falaria “Bürgerliches Gesetzbuch”.
- O que é que isso quer dizer, Rafael?
- Não sei, eu não falo Alemão! - Ai, Rafa, você tem cada uma...
- E você, Vanessinha, tem cada coxa...
- Ai, Rafa, você percebeu como nós estamos falando besteiras um para o outro?
- A propósito, Vanessa, eu já te falei sobre a minha teoria da besteira recíproca?
- Ainda não!
- Pois então escuta só...
E eu e a Vanessa fomos muito felizes com nossas conversas cheias de besteiras e plenas de bobagens até o dia em que eu, falando muito sério, a pedi em casamento e ela, também séria demais, me disse sim!