16/04/2010

As cores e as dores de um homem.

Aconteceu de novo, infelizmente! Uma vez mais, o mundo do futebol assiste, atônito, a uma cena de racismo e de inaceitável preconceito. Conforme veicula hoje o portal Globo.com “Manoel, zagueiro do Clube Atlético Paranaense, foi registrar um Boletim de Ocorrência contra o zagueiro Danilo, do Palmeiras. De acordo com o jogador do Furacão, além de ter levado uma cusparada do palmeirense, registrada pelas câmeras da TV, ele ainda teria sido chamado de “macaco” por Danilo”. À triste notícia, acrescento: o racismo e o preconceito, de forma geral, são demonstrações de SEGREGAÇÃO RACIAL, DE COVARDIA, DE BAIXEZA, DE FALTA DE CARÁTER E DE BURRICE.
Estou indignado, e, em firme protesto, re-edito neste espaço uma coluna que escrevi noutro veículo (re-edito a coluna, pois a barbaridade também foi re-editada e re-editarei sempre que houver diante de meus olhos um ato hediondo como o que ocorreu ontem, no Palestra Itália, em plena capital cosmopolita de um País que se anuncia livre de preconceitos). Mas não pensem que vou escrever inspirado pelos idiotas que protagonizam atos de racismo e em “homenagem” a eles. Tampouco darei a eles alguma lição de moral, pois moral é coisa que eles não têm e nunca terão. Imbecis são dignos das colunas policiais e indignos de ganharem espaços numa coluna ligada ao futebol. Escrevo, sim, sobre as diferentes cores dos homens, sobre as diferentes dores dos homens. Escrevo sobre a vida. Que as responsabilidades criminais sejam apuradas e que seus autores prestem contas à Sociedade brasileira que, estarrecida, não admite esse time de ocorrência!
O ano de 2003 foi difícil para mim. Entre fevereiro e novembro, fiquei desempregado. Em agosto, consegui trabalho voluntário num dos hospitais de Curitiba. Duas horas por semana, sempre nas terças-feiras. Nunca havia sido voluntário até aquele agosto e, de cara, fui escalado para ler histórias e supervisionar o desenho das crianças internadas, mas que já estavam liberadas para as atividades de lazer/terapia.
Tímido, pensei que ia ser muito complicado me soltar com as crianças e quebrar o gelo. Entrando na sala das leituras e dos desenhos, apresentei-me - num improviso - “Eu sou o Rafael, tenho 28 anos e torço pelo Atlético Paranaense!” e depois pedi que a gurizada fizesse o mesmo. Diante dos meus olhos, crianças, visivelmente abatidas, ganharam forças e foram se apresentando.
- Meu nome é Marcelo, tenho 8 anos e torço pelo Atlético!
- Muito prazer, seu Marcelo. Daqui pra frente você vai ser o Marcelinho!
A gurizada explodiu:
- Marcelinho! Marcelinho! Marcelinho!
- Eu sou o Renan, torço pelo Atlético e tenho 5 anos!
- Muito prazer, Dr. Renan!
E a gurizada, rindo, arriscou uma quase-musiquinha: Dr. Renan! Dr. Renan!
- Rebeca, 6 anos, e não gosto de futebol!
- Dona Rebeca, se você não gosta de futebol, gosta de peteca? - provoquei, na forma de quase-poesia, e veio mais um coro da gurizada:
- Rebeca peteca! Rebeca peteca!
Mais duas apresentações e chegou a vez de uma menininha negra, cabecinha raspada por conta da quimioterapia, magrinha, enormes olhos pretos, olhos curiosos.
- E você, menininha, não vai me dizer o seu nome?
- Não!
- Nem a sua idade?
- Também não!
- E o time?
- Menos ainda!
Todas as negativas dela tinham um arzinho de deboche. Ela estava louca pra responder a todas as perguntas, mas estava fazendo charme, eu percebia isso e dava corda só pra ver aonde ela ia chegar.
- Ah, conta pro tio qual é o seu nome?
- Não! - e ela disse esse “não” segurando o riso!
Como o diálogo não progredia, a turminha entregou:
- Ela é a Letícia, tem 9 anos e torce pro Coxa!
Fingindo decepção, ataquei:
- Dona Letícia, você é uma menina tão linda, e torce pelo Coxa? Ah, isso não se faz com o Tio Rafa! Logo pro Coxa! Pro Coxa… - e ela, diante do meu fingido horror, abriu-se num sorriso que iluminou seu rosto abatido e que iluminou a sala inteira.
Ao final das apresentações, houve amor à primeira vista, de parte a parte. Este pobre Rafael virou Rafa, pra criançada do Hospital; e cada criança acabou rebatizada com os apelidos carinhosos de “Marcelinho, Rebeca Peteca, Dr. Renan e Letícia Coxa-Branca” - coisa de amigo pra amigo.
O ano de 2003 foi difícil para o Atlético e risonho para o Coritiba. Toda terça-feira eu ia visitar os meus amiguinhos no Hospital para a “Leitura das Histórias e Supervisão dos Desenhos”. Nas atividades, entre uma história e outra, entre um rabisco e outro, Marcelinho, Dr. Renan e eu falávamos sobre o Atlético - meio que disfarçadamente, pra Letícia Coxa-Branca não nos ouvir.
- Rafa, o Atlético está ruim!
- Está feia a coisa, Marcelinho!
- Tem hospital pra time de futebol, Rafa?
- Tem nada, Dr. Renan!
- Xi, olha a Letícia Coxa-Branca!!! Ela está vindo. Vai tirar sarro de nós! Disfarça!
E não dava outra! A Letícia Coxa-Branca - menininha negra, cabecinha raspada por conta da quimioterapia, magrinha, enormes olhos pretos, olhos curiosos - chegava perto de nós, com ares de riso, e perguntava:
- E o Atlético, Rafa? Está ruim, né?
- Está, mas vai melhorar!
- É, mas o meu Coxa está muito melhor e vai jogar a Libertadores! Pode perguntar pro meu pai! Foi ele que me falou e ele entende tudo de Coxa!
No dia 07/10/2003, primeira terça-feira de outubro, fui ao Hospital para minhas atividades. A turminha reunida se ressentia da ausência da Letícia. Após as histórias e desenhos, procurei o Dr. Giorgio Baldanzi e ele me falou que a Letícia havia sofrido uma recidiva da anemia falciforme e que estava na UTI desde a noite de sábado, 04/10/2003. Era pouco provável que ela sobrevivesse.
No sábado, 11/10/2003, às 9 horas da manhã, recebi por telefone a notícia: a Letícia havia falecido, pouco antes das 4 horas da madrugada. Naquele sábado de outubro - dia de Atletiba, por sinal - fui ao velório da Letícia. Ao me despedir da pequenina amiga, vi o corpinho negro repousando no caixãozinho branco; vi o corpinho negro cercado por três bichinhos de pelúcia, multicoloridos; o corpinho negro coberto por flores brancas e ramos verdes, como se a natureza quisesse prestar sua homenagem à pequena Letícia Coxa-Branca.
Após o sepultamento, seu Paulo - pai da Letícia - aproximou-se de mim e me entregou uma folha cuidadosamente dobrada. Nela estavam desenhados: um homem de óculos - branquelo e gorducho - vestindo a camisa do Atlético e uma menininha negra vestindo a camisa do Coxa. Em volta dos desenhos, um monte de coraçõezinhos e no rodapé uma dedicatória, com letras trêmulas: “Pro meu amigo Rafa uma lembrança da Letícia Coxa-Branca”. Lembrança de uma menina Negra, Linda e Coxa-Branca que eu nunca mais vou esquecer.