28/12/2009

Meus Oito Anos.

Amanheci o dia 23 de Dezembro de 2001 em Santa Terezinha, um dos balneários de Praia de Leste. Amanheci sem ter dormido. Uma noite inteira feita de incertezas, recordações e angústias. Sozinho no quarto, o corpo pesava sobre a cama de onde eu olhava o ventilador a girar, ampliando a ansiedade. Inerte, eu fazia o inventário dos meus dias: vinte e seis anos de idade, dezenove dos quais vividos em função do Atlético. As recordações - boas e más - martelando a cabeça, os nervos e os músculos.
E se 1983 fosse re-editado? Eu não suportaria a dor. Não tinha mais oito anos de idade como naquele Maio. A sensação de estar tão perto da maior vitória e, de repente, ver que a falta de um gol levava a taça para longe, embora o campeão ostentasse as mesmas cores do meu Atlético. Chorei demais naquele domingo de 83. Pensei que nunca mais estaria tão próxima a maior vitória. E eis que 18 anos tinham se passado até um novo domingo, 23 de Dezembro de 2001.
Um raio de luar entrava pela fresta da janela e ia bater no espelho formando uma estrela prateada. Levantei da cama, caminhei até lá e me pus diante dele. A pouca luminosidade só permitia que eu visse o reflexo da minha sombra. Diante do espelho, a estrela prateada do raio de lua me dava na altura do peito. Acendi um cigarro cuja brasa fez nascer no espelho uma segunda estrela: vermelha, dourada, amarela e incandescente.
Num gesto cuidadoso movi o cigarro até emparelhar as estrelas no reflexo do meu peito. A prata do luar e o dourado do fogo: marcas que eu queria indeléveis sobre o sagrado escudo do meu Atlético Paranaense, mas ainda faltavam muitas horas até que tudo fosse consumado e o coração se consumindo, pouco a pouco, na noite que parecia não ter fim. Saí de casa. Eram quase cinco horas da manhã.
Caminhei até a praia, sentei-me na areia e olhei para o horizonte. Diante de mim a lua riscava o mar num longo traço prateado. Diante do mar o homem se sente mais perto de Deus e, paradoxalmente, sente-se mais abandonado. Diante do mar imenso, o homem se sente grão de areia. Quis elevar meu pensamento a Deus, mas, convertido em grão de areia, senti-me incapaz de receber dEle alguma graça. Que é um grão de areia para querer obter Providência Divina? Resignado, olhei para o horizonte.
Diante de mim, o Sol ia surgindo tímido na forma de um traço vermelho sobre o mar, traço que, aos poucos, ganhava corpo ao lado do rasgo prateado. De repente, as cores se emparelharam: prata e ouro sobre as águas salgadas, as cores que eu queria que fossem se juntar ao vermelho e preto do Manto Sagrado do meu Atlético, há tanto tempo. Voltei para casa, fiz minha mala e retornei a Curitiba, que me recebeu chuvosa naquele Domingo, 23 de Dezembro de 2001.
O carro veio pela Engenheiros Rebouças e subiu a Brigadeiro Franco. Na frente da Arena da Baixada havia um telão e nos varais da Praça bandeiras e camisas tremulavam como se tivessem vida própria, convertidas em mãos que acenavam a todos que por ali passassem, como que a anunciar, enfim, o dia da maior vitória. Atleticanos - vivos, mortos e nascituros - surgiam de todos os lados em direção ao Joaquim Américo e traziam nos olhos o brilho radioso da esperança.
Meus pelos se eriçaram e os olhos se encheram d’água, como se a alma quisesse sair pelos poros e voar até São Caetano do Sul. Parei na farmácia que dali era mais próxima e comprei um blister de calmante, santo remédio para os nervos à flor da pele ainda mais quando associado ao cigarro, este em doses generosas. Entrei em casa, recusei o almoço e me tranquei no quarto. Sozinho, o corpo pesava sobre a cama de onde eu olhava o teto branco, ampliando a incerteza.
Imóvel, eu me perdia em elucubrações. Teto branco e jogo para começar. As recordações - boas e más - martelando a cabeça, os nervos e os músculos; corpo no limite. “E se eles inverterem nossa vantagem? E se os 4 a 2 de domingo passado não servirem para nada? E se 1983 for re-editado? Agora que estamos, de novo, tão perto da maior vitória, como suportar um eventual vice-campeonato?”. A mão, trêmula, levou à boca, seca, o copo d’água e dois comprimidos, que deveriam servir de remédio para o atleticano doente que sou, desde 1982.
Tudo em vão e nem sequer efeito placebo: na hora em que a bola rolou, meu coração foi junto levando consigo todos os sentidos. Diante da tevê, eu fazia o inventário dos meus dias: vinte e seis anos de idade, dezenove dos quais vividos em função do Atlético e noventa minutos pela frente, ao final dos quais eu saberia se a vida ia me permitir provar o gosto doce da maior vitória ou, em via reversa, provar - de novo - o gosto amargo de perder, depois de estar com a vitória tão próxima das mãos. Se 1983 fosse re-editado, eu suportaria a dor? Haveria remédio para um atleticano doente?
Os minutos iam passando e, a cada sessenta segundos, meu corpo era golpeado pelas lâminas acutíssimas dos ponteiros que se arrastavam. Foi-se o primeiro tempo. No intervalo, dois cigarros fumados com a fúria de quem tem o coração e a alma em chamas. Restavam quarenta e cinco minutos que, naquela altura, era a medida da eternidade.
A consciência, há muito, dera lugar à superação e o corpo - em transe e no limite das forças - testemunhava o nascimento do mais novo Campeão Brasileiro: o Clube Atlético Paranaense! Diante do vidro da tevê, eu assisti ao gol de Alex Mineiro como um pai de primeira viagem que vê o filho vir à luz, e não acredita no que seus olhos testemunham. Amar o Clube Atlético Paranaense como se ama um filho, penso que é esta a medida do nosso verdadeiro amor.
Amar o Atlético, incondicionalmente, e chorar com ele, e vibrar com ele, e se zangar, e se alegrar com ele e dedicar ao Atlético uma vida inteira, como eu tenho feito desde 1982 quando, ainda menino, senti meus pelos se eriçaram e os olhos se encherem d’água, como se a alma quisesse sair pelos poros e voar até o Céu.
Céu onde, desde a noite de 23 de Dezembro de 2001, brilham, intensamente, duas estrelas. Uma de prata, da cor do luar; outra de ouro, a refletir o Sol. Estrelas que são marcas gloriosas e indeléveis sobre o sagrado escudo do nosso Clube Atlético Paranaense e que orgulham todos os Atleticanos - vivos, mortos e nascituros.