21/12/2009

Conto de Natal.

Chegou ao Educandário em março de 1980, com cinco anos de idade, levado pelas mãos da avó materna. “Chora não, fiinho meu. A vó vai estar sempre com você, te cuidando, ouviu? Chora não, meu fiinho!”. Do colo da avó para os braços de uma freira. Um novo parto, ainda mais dolorido.
Nascera de mãe alcoólatra e pai desconhecido - este, por certo, um cara qualquer que comprava sexo a preço de cachaça na Vila Nossa Senhora da Luz. A mãe tentou o aborto. Primeiro com agulha de tricô, esgrimindo covardemente contra o feto. Depois ingerindo litros de chá de canela que, segundo se dizia, fazia abortar.
Não conseguiu interromper a gravidez e amaldiçoou aquele filho - cada vez mais, na medida em que a barriga crescia. “Como é que me foi acontecer essa desgraça? Um filho é uma coisa que acaba com a vida da gente! Eu nunca que mereci uma desgraceira dessas!” - a ladainha monocórdia durante nove meses.
Deu à luz um guri esquálido e negro. Não quis ver o filho. Coube à avó do menino lhe dar nome: Gabriel. E depois lhe dar proteção para que escapasse da fúria materna e lhe dar todo o resto que garantisse a sobrevivência. Com medo de deixar Gabriel ao alcance assassino da mãe, a avó o botava dentro do carrinho de catar papel e ia trabalhar. Da Vila ao Centro, todos os dias da vida.
O guri tinha menos de dois anos quando a mãe morreu numa boca de fumo. Dívida de drogas, e o corpo já não servia como pagamento. Viciado que fuma, e não paga é prejuízo para o negócio de qualquer bandido. A guria encontrara sua hora, ainda que tivesse apenas dezessete anos. Especularam que o cara que matou a moça era pai do Gabriel, mas o povo fala demais. Nunca provaram nada.
Depois disso a avó até que ficou mais aliviada. Botava Gabriel no carrinho e ia trabalhar, mas agora era só ela e ele, sem a ameaça que a mãe do guri representava. Foram três anos com essa sensação boa de paz, até que a tosse começou a piorar. Tosse de tirar o fôlego e um emagrecimento que se acentuava a ponto de as costelas ficarem à mostra, além do rosto cada vez mais afilado. Estava tuberculosa, segundo o doutor da Praça Ouvidor Pardinho.
No limite das forças, levou Gabriel ao Educandário, era março de 1980, o guri com cinco anos de idade. “Chora não, fiinho meu. A vó vai estar sempre com você, ouviu? Chora não, meu fiinho!”. E passou Gabriel do seu colo para os braços de uma freira. E provou pela primeira vez da sua morte, antes de morrer duas semanas mais tarde. Gabriel ficara irremediavelmente órfão.
O Educandário funcionava num prédio de três andares, incrustado num terreno que se estendia em subidas e descidas a ampliar a sensação de abandono. Espalhados pela propriedade havia bancos de jardim, pneus amarrados em galhos fazendo as vezes de balanços, imagens de santos e folhas secas que nunca eram varridas, formando um tapete que acabava amortecendo a queda das crianças mais ativas.
O refeitório era um salão imenso. No almoço, as crianças faziam fila com suas canecas de folha-de-flandres, talheres escurecidos pelo uso e seus pratos azuis de plástico. Capilé e macarrão com salsicha; às vezes, sopa de feijão e suco de laranja; bananas como sobremesa. Antes das refeições, a oração “O pão nosso de cada dia nos daí hoje… amém!”. E o alarido, que é comum onde existem crianças, sendo, em vão, abafado pelos pedidos das freiras “Comam em silêncio! Será que é impossível se fazer silêncio?”
A primeira vez em que esteve no refeitório, Gabriel tinha cinco anos e foi alimentado por uma das noviças. “Olha o avião, Gabi!” e lá se ia mais uma boa colherada. Com o tempo, o menino foi aprendendo a se virar sozinho, mas de vez em quando, como toda criança, fazia manha só para chamar a atenção: “Quero avião!”, mas como havia crianças menores chegando a todo o momento, a prioridade era atender os mais novos e ele já estava com sete anos, afinal de contas!
Gabriel já era grande demais para comer de aviãozinho e grande demais para ser adotado. Aos sete anos, um menino negro dificilmente é adotado. No Brasil - embora a maioria da população seja negra, ou parda como sustentam alguns - os casais dão preferência a meninas loiras, de olhos claros e cabelos lisos, como se adotassem uma boneca, e não uma criança.
No refeitório aconteciam, também, as Noites de Natal. O imenso salão era decorado com motivos natalinos e a mesa - caprichosamente arrumada pelos voluntários e pelas irmãs de caridade - ostentava longa fila de pratinhos, copos, talheres e comidas típicas do Natal. Os presentes eram colocados em volta da árvore no canto do refeitório. Em cada pacote o nome de uma criança.
Era bonito ver cada criança ser chamada pelo nome para receber, das mãos do Papai Noel, o presente que lhe tinha sido oferecido. Na Noite de Natal de 1990, Gabriel ganhou uma Camisa do Atlético Paranaense. Usada, mas em bom estado. Um pouco maior do que ele, mas que o guri achara legal, pois tinha o patrocínio da Coca-Cola escrito na altura do peito e atrás, na linha dos ombros. Além disso, tinha o número 10, reservado aos craques da bola.
Envergando a Camisa do Atlético Paranaense, Gabriel passou a bater bola no terreno cheio de subidas e descidas do Educandário. A paixão pelo futebol era tanta que Gabriel convenceu o seu Jairo, zelador da Instituição, a dar um jeito naqueles morros e ladeiras e assim nasceu o campinho de futebol da gurizada. Deu um trabalho danado ao seu Jairo, aos guris maiores e aos voluntários, mas valeu. Havia, enfim, um campinho para a molecada jogar.
Durante a preparação do terreno, seu Jairo foi alvo de inúmeras perguntas de Gabriel. “Seu Jairo, que é que significa CAP?”, “O camisa 10 é sempre o craque do time?”, “Quem que foi o melhor jogador do CAP até hoje?”, “E hoje qual é o jogador que você mais gosta?”. E o velho Jairo respondia a tudo, até porque falar de futebol - e especialmente do Atlético - era para ele enorme satisfação.
“Presta atenção, Gabriel: CAP significa Clube Atlético Paranaense. O camisa 10 é o craque do time desde que o Pelé - o maior jogador de todos os tempos - passou a atuar com esse número na camisa, por isso é comum ser o 10 o melhor jogador do time. Mas, como em tudo na vida, tem exceção. O melhor jogador do Atlético até hoje foi o Sicupira - que jogava com a 8, e não com a 10. Para mim, hoje, o melhor jogador do time é o Fião, que é zagueiro, e isso também é exceção porque normalmente a torcida gosta de quem joga do meio pra frente!
Ao ouvir o nome Fião, o Gabriel caiu na gargalhada: “Fião? O nome do cara é Fião? Poxa, é muito esquisito o cara se chamar Fião, seu Jairo! Não é que seja feio, mas é diferente demais!” - e depois de cair na gargalhada, Gabriel começou a repetir - de si para si - o nome: “Fião, Fião”. E depois concluiu: “É legal! Taí: Fião! Gostei! Eu vou ser o Fião”.
Seu Jairo, diante do entusiasmo de Gabriel, consertou: “Gabi, magrinho assim, tu não pode ser Fião, piá. Tu tem que ser Fiinho. Fiinho! Ouviu bem? Tem que ser Fiinho!”. Ouvindo o som da palavra, Gabriel ficou imóvel e repetiu: “Fiinho, Fiinho, Fiinho”, olhando longe, como se estivesse em transe.
Entristeceu-se. Botou a bola debaixo do braço e caminhou até o dormitório. Uma angústia danada, um nó na garganta, um vazio no peito, uma sensação de vergonha, uma coisa impossível de explicar. Chorou, copiosamente, a noite inteira. Chorou de soluçar. Enxugou as lágrimas com a Camisa do Atlético Paranaense. Pediu a Deus que o levasse dali, blasfemou, cravou as unhas nos braços e quis morrer, mas conseguiu dormir.
Dormiu e teve um sonho confuso. Viu tanta gente misturada. Gente gritando. Pânico. Ouvia tiros. Ele corria de um policial que o queria prender. Correu tanto que, de repente, a calçada virou gramado e a perseguição se convertera em partida de futebol. Ele com a Camisa do Atlético Paranaense.
Driblava um, dois, três marcadores. O policial que o perseguia virara árbitro da partida. Gabriel corria. Driblou o quarto e o quinto marcadores até que foi derrubado dentro da área: pênalti marcado! Gabriel tomou a bola nas mãos e a colocou na marca da cal. Olhou fixamente para o goleiro e numa cobrança violenta botou a pelota fora do alcance do arqueiro: golaço!
Depois de marcar o gol, Gabriel correu em direção à arquibancada. Batia no peito com a mão direita fechada. Chorava copiosamente. Foi saudado por milhares de torcedores ensandecidos e adentrou a arquibancada correndo no meio do povo como se abrisse o Mar Vermelho. Chegou ao último degrau de arquibancada e encontrou uma senhora negra. O que era tumulto virara absoluto silêncio.
Diante dela, Gabriel se ajoelhou - olhos marejados, coração disparado - e ouviu uma voz suave lhe dizendo, quase em tom de oração: “Chora não, fiinho meu. A vó está sempre com você, te cuidando, ouviu? Chora não, meu fiinho! Chora não”.
E no meio da noite, Gabriel acordou em paz. Saiu da cama, vestiu a Camisa do Atlético Paranaense, botou a bola debaixo do braço, abandonou o dormitório e foi ao campinho do Educandário. A iluminação da rua somada ao luar, que cobria tudo de prata, permitia ao menos a cobrança de uma penalidade.
Gabriel ajeitou a bola, tomou distância e disparou para o gol vazio! Depois correu em direção ao muro - obstáculo convertido em arquibancada imaginária. Socou o ar repetindo o gesto eternizado por Pelé. Ajoelhou-se e fez o sinal da Cruz - imitando desta feita Rivelino. Estendeu os braços para o Céu - os dedos indicadores em riste - e, numa espécie de agradecimento, deixou falar o coração: “Vó, este é pra senhora! Este é pra senhora! Vó, esteja sempre comigo!”.