27/05/2009

A Síndrome de Mazzaropi

O caso é inusitado e tem como protagonista o Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão que dormiu bonzinho da silva e acordou como se fosse o Mazzaropi reencarnado.Vamos aos fatos.
Dia 16 de janeiro de 1989, noite quente do verão brasileiro. O Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão sai de sua clínica, a maior clínica de cirurgia plástica da cidade de São Paulo, louco para tomar um uísque dezoito anos em companhia dos amigos que o aguardavam num famoso piano bar da região de Higienópolis, área nobre da não menos nobre paulicéia desvairada.
Chegou lá por volta das sete horas, tomou três doses generosas do velho e bom scoth, despediu-se de todos e disse que ia para casa dormir, pois no outro dia, além da jornada habitual na clínica, iria receber, à noite, o prêmio de melhor cirurgião-plástico da cidade de São Paulo, em concorrida cerimônia a ter lugar no Palácio dos Bandeirantes. Teria de estar inteiro, era o que ele pensava e apregoava e até nisso era apoiado pelos amigos que jamais ousaram esboçar qualquer censura contra o todo-poderoso Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão. Partiu.
Chegando em sua casa, Dr. Amílcar houve por bem tomar um banho demorado, após isso acendeu um derradeiro charuto, leu os jornais que se espalhavam sobre a mesinha de centro da ante-sala da enorme biblioteca, sentiu um tédio danado, resolveu dormir e dormiu. Já era quase 17 de janeiro de 1989.
“Dormiu bom e dormiu bem”, era o que garantia Dona Sophia Helena Dubois d’Alencastro Porto Maranhão, hoje ex-mulher do Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão. Mas o que houve naquela noite? Para responder a essa pergunta, que por dezesseis anos vem assombrando a alta sociedade paulistana, é que estamos aqui narrando a verdade dos fatos, doa a quem doer, atinja a quem atingir, sem receios de magoar quem quer que seja.
Como se sabe, o Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão sempre foi o mais respeitado cirurgião-plástico brasileiro, mais respeitado até que seu concorrente mais próximo o carioca Ivo Pitanguy. Formado pela faculdade de medicina da USP, o Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão se especializou em cirurgia-plástica em Houston, Texas, EUA, em residência de quase quatro anos, entre os anos de 1965-1968.
Fã ardoroso da Lingüística, Dr. Amílcar dominava sete idiomas até o famigerado dia 17 de janeiro de 1989. Porém, naquela manhã, o Dr. Amílcar levantou da cama com um andar esquisito e quando Dona Sophia Helena perguntou o que ele ia fazer fora da cama às cinco horas da madrugada, ele se limitou a responder:
- Dorme, muié, não posso nem cagar em paz que você já se mete na minha vida! E aquilo saiu da boca do Dr. Amílcar com a maior naturalidade do mundo, como se fosse normal responder assim à sua esposa, como se fosse normal usar um Português tão primitivo para se comunicar.
Com justificada estranheza, Dona Sophia esperou o Dr. Amílcar sair do banheiro, e lhe repetiu a pergunta:
- Meu bem, posso saber o que você está fazendo fora da cama numa hora dessas? Obteve como resposta algo muito parecido com a resposta que já lhe dera o marido:
- Ara, fui cagar, peste! Será que nem cagar nessa casa é permitido, eu heim!
Nervosa, mas acreditando que aquilo era de fato uma grande brincadeira do marido, Sophia pediu a ele que parasse de pilhérias até porque aquele seria o dia da grande homenagem a ele e não ficaria bem um homenageado se comportar como um caipira, ao melhor (ou seria pior?) estilo do Mazzaropi.
Ele ouviu as ponderações da mulher, olhou para cima, suspirou e disse quase num lamento:
- Vou tomar banho e sair. Tenho que trabalhar no consurtório que hoje tem uma penca de madame pra atender e o que não farta é pelanca pra costurar. É um tar de tira daqui, coloca ali que chega a dar um nó nos dedo da mão. E de noite eu ainda vou naquela festa pegar o prêmio que eles resorveram me dar pra puxar o meu saco. Qualquer dia desse eu inda prego fogo nesse bando de desocupado que adora fingir que são meus amigo.
Definitivamente, algo grave acontecera durante o sono do Dr. Amílcar a ponto de transformar um homem cultíssimo num matuto da mesma linhagem do afamado Jeca Tatu. E o mais curioso, e paradoxal, era perceber que os conhecimentos médicos continuavam intocados, e até mais aguçados se é que isso era possível dado o nível de excelência dos conhecimentos do Dr. Amílcar. Mas se os conhecimentos médicos haviam sido preservados, não se pode dizer o mesmo do novo linguajar e dos novos hábitos, uma verdadeira lástima.
O Dr. Amílcar, que em tudo era requinte e sofisticação, passara a ser, sem tirar nem pôr, um novo Mazzaropi, com todos os hábitos, tiques, falas e gestos do antigo astro dos cinemas e é claro que isso trouxe as mais impensáveis conseqüências.
Como narramos, a primeira vítima foi a esposa, Dona Sophia Helena que acostumada a dormir com o antigo Amílcar, sentiu-se pouco à vontade ao acordar nos braços do Dr. Mazzaropi e, por isso mesmo, dois meses depois da primeira crise do marido, pediu a separação em caráter irrevogável.
Aos que pensam que o Amílcar, ou Mazzaropi, se incomodou com a separação, transcrevo aqui a reação do nosso herói, na íntegra: “Que vá pro inferno aquela vaca que o touro aqui tá vivendo no paraíso”. E nunca mais quis saber mesmo da vaca.
A clientela também foi diminuindo, por razões óbvias. Houve uma vez que o Amílcar-Mazzaropi atendeu a mãe do Governador de São Paulo. Uma hora inteira de exames e ao final ele sentenciou: “Óia, minha senhora, não tem jeito não. Esse teu nariz parece um cabo de garrucha, a oreia parece um naco de bacon esticado na fritura e esses fiapo de barba que saem da verruga nem Jesus Cristo dá jeito. A senhora é só jogando fora ou se conformando em viver com a cara que a mãe natureza te deu”.
Noutra oportunidade, atendendo uma socialite porto-alegrense, ele foi mais categórico ainda: “ Silicone nos peito eu até coloco, mas mudá a cor dos bico de marrão pra cor de rosa só se eu fosse milagreiro”. E a mulher saiu dali tão ofendida que por pouco não reacendeu a velha guerra entre paulistas e gaúchos naquele exato instante.
E vendo toda aquela situação os amigos mais próximos tentaram recobrar a consciência do Amílcar, ao que ele respondia: “Consciência eu tenho, o que me farta é paciência”. E logo que dizia isso se acocorava, acendia um palheiro, dava uma boa tragada e cuspia um jato de canto de boca, para o horror dos amigos presentes.
Os que viram dizem que a última consulta do Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão, já amplamente dominado pelo espírito do Mazzaropi, foi com um conhecido deputado federal do estado da Bahia, em dezembro de 1989. O homem se consultara para remodelar o rosto, refazer o corpo e se possível ganhar vastas madeixas que lhe devolvessem a eterna juventude.
O Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão recebeu o político em seu consultório, apalpou-lhe as faces, afundou a ponta dos dedos nos tufos de cabelos que bravamente resistiam na região da nuca, apertou a gordura espessa da barriga, mediu toda sorte de diâmetros corporais e sentenciou: “A medicina tem muito pouco pra fazer com você, mas essa banha toda transformada em torresmo rende umas três arroba bem servida. Se quiser fazê negócio comigo eu te tiro o toucinho aqui mesmo e nem cobro nada. É o meu serviço em troca da banharia toda, e nós dois ficamo no lucro”. E dito isso se acocorou na sala, acendeu mais um palheiro e cumpriu seu novo ritual de pitador.
Depois dessa os amigos se afastaram, o consultório fechou, a história ganhou inúmeras versões (há quem jure que ele foi internado como louco no sul de Minas Gerais a pedido do tal deputado), e foi tão contada quanto esquecida, e hoje o Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão é lembrado como o personagem de uma lenda que transformou o médico mais famoso de São Paulo numa cópia fidelíssima do Mazzaropi.
Quanto à lenda que se criou, muitos crêem, muitos desacreditam totalmente e na faculdade de medicina da USP lançaram até mesmo uma monografia com o tema: Síndrome de Mazzaropi – Como um cérebro brilhante deu lugar à mente de um caipira.
Alheio a tudo isso, Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão voltou a residir em Houston, no Texas, em janeiro de 1990, pois lá deixara seu verdadeiro amor, Mary Kate Lifeson d’Alencastro Porto Maranhão, sua deliciosa, loira e peituda esposa norte-americana, e suas verdadeiras razões de viver, os três filhos: John, Paul e Ringo, todos nascidos entre 1965 e 1968.
Desde janeiro de 1990, o Dr. Amílcar é o Diretor-Geral do East Houston Regional Medical Center, onde, só no ano de 2004, operou cento e quinze pacientes.
Quando perguntado se tem saudade do Brasil, o Dr. Amílcar d’Alencastro Porto Maranhão diz que sim, mas somente tem saudade dos filmes do Mazzaropi, pois foram filmes que mudaram a sua vida.
P.S.: ¹Em novembro de 1990, Mary Kate Lifeson d’Alencastro Porto Maranhão deu à luz George, quarto filho do casal e todos foram felizes para sempre. ²Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com fatos e pessoas reais será mera coincidência.³Caipira é esperto pra cacete e o amor, como vimos, justifica tudo nessa vida.